quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Agenda – um surto moderno: contra o desperdício da experiência.

Imagine um imenso lago congelado, tão grande a perder de vista. Imagine que há uma fina camada de gelo sobre ele e que você precisa caminhar sobre o lago. Pois bem: se você andar devagar você morre. Se você parar, o chão racha. Para conseguir você precisa ser rápido, e não parar em momento algum. Não parar em momento algum.
Este texto é bem denso, mas devo falar disto mesmo que seja desagradável, calar é pior. Todas as verdades silenciadas tornam-se venenosas. Desculpe-me, mas a mim não bastou acender a luz no quarto escuro em que eu estava. Precisava dividir meu olhar, através deste texto. Precisava falar sobre o que há no quarto agora iluminado. Meu velho par de óculos anda desfocado, mas mesmo assim tenho visto coisas que antes não imaginava existir... Tenho rebatizado o que há em mim, tenho reconsiderado, consagrado, acolhido tantas coisas, e jogado muitas outras fora... Tudo culpa do ingrato conhecimento... ah... o conhecimento... tão imenso prazer. Inexorável. O conhecimento. Ele coloca nossa vida em risco. Coloca a paz a mercê de toda “espécie” de desconforto... Nietzsche estava certo neste ponto. Ele falaria do tal lago que estou a dizer. Mas não falou.
Pois eu digo agora. E sinto muito por dizer, mas existimos como se vivêssemos em uma espécie de lago congelado, e tudo o que podemos fazer é deslizar sobre uma fina casca de gelo. O mundo em que a gente vive demanda tamanha leveza, tamanha velocidade, tamanha agilidade, tamanha superficialidade, que qualquer profundidade pode colocar nossa vida em risco.

Ninguém escapa. Até as pessoas mais sensíveis, intuitivas, emotivas, até estas percorrem a vida superficialmente. São inteligentes, por isto criam sentidos, criam razões para agir de um modo e não de outro. Mas não fogem da superficialidade... caminham sobre o mesmo lago, sem poder parar... Ao invés de se aprofundar na vida, de sofrer, de ter prazer, de gozar e de desesperar, ao invés de sentir tudo, de descansar no momento, no instante do presente, não!! As pessoas ficam fixadas num ponto a ser alcançado. O objetivo. O propósito. A missão. Sempre um ponto a se chegar... hoje Nietzsche passou o dia comigo. Não teve como não pensar nele. Ele diria aqui que não é na estabilidade de uma natureza reconciliada, redimida e pacificada que se pode buscar aquilo que nos eleva, se não, antes de tudo, na constância e permanência que sempre retrai, no instável e efêmero, no que se debate e declina, no que se encontra em transito. É neste terreno fugidio, da passagem e da travessia que podemos nos elevar e ser alguém que beira algo de verdade, algo “da” verdade...

E a verdade é toda esta: eu querer transformar todo “foi” em um “assim eu quis”, ou “esta foi minha vontade”. Mas a própria vontade é prisioneira. Parece libertadora, mas ela mesma é cativa. O cativeiro reside na relação com o tempo. A pedra de toque da NOSSA existência - a vontade é o nosso supremo desafio e tentação. Assim como o tempo e o passar do tempo. Como viver a vida? Que vida levar? Como aproveitar nosso tempo vivente? Como confrontar a finitude? Tudo o que é, no próximo instante já terá sido. O presente mais insignificante prevalece em realidade sobre o mais significativo passado. A cada ocorrência da nossa vida o “é” pertence sempre a um pequeno instante. Dali pra frente será o “foi”. E o que foi, foi. Esta é a pedra que a vontade não pode remover. Por isto Nietzsche fala que devemos viver como se todo instante pudesse ser querido para sempre.

Justamente aqui entra a questão da agenda. As pessoas precisam lidar com o tempo. Com este tempo denso que descrevi. Com o tempo de Chronos, que engolia vivo seus filhos. O sujeito, para aproveitar o que tem, para evoluir no tempo que lhe “cabe” (escrevi “acabe” sem querer – acho até que ficaria melhor aqui), enquanto pode, enquanto vive, começa a correr... Todos nós corremos por sobre o tal lago congelado. Por sermos vítimas da superficialidade é que nos concentramos na administração plena do cotidiano, ou seja, dependemos de nossas agendas, como quem diz: o controle está em minhas mãos! Isto é um surto moderno, generalizado, mas absolutamente necessário porque se as pessoas não fazem isto, então não fazem simplesmente nada da vida. Entendam como crítica, mas entendam como uma visão “realística” também. Eis o paradoxo!
O pior é que a pessoa só se dá conta de que isto é um surto quando ela acorda de manhã e sabe que tem 29 coisas para fazer, mas aquele dia não tem a mínima capacidade de fazer nem duas. Mas a pessoa sabe que se não fizer, não será aquele indivíduo emancipado, dedicado, empenhado e esforçado que quer ser. Não terá a tão almejada notoreidade, enfim.. Então vai fazendo as coisas em uma completa atitude acética, quase mornástica, para conseguir caminhar pelo dia e fazer o máximo que puder, apostando na ideia que os outros dias serão melhores.
Acho que eu já disse o principal, o mais urgente. Agora não tenho mais tempo, não posso aprofundar o assunto, porque minha agenda diz que tenho uma tarefa a cumprir... aliás, até o momento de descansar no meu sono, ainda tenho 8 tarefas, uma mais complexa que a outra. Mas é com dignidade que percorro pelo lago, e é com a solidão de ter escolhido ser, tão exatamente quanto possível, aquilo que sou. A solidão dói muito menos do que ter escolhido a falsa não-solidão de ser o que não se é, apenas para não sofrer a rejeição tristíssima dos outros. Tudo porque (acho que já disse isto antes) sempre tive a convicção de que é preciso estar à altura do que somos.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Sem perfumar a Flor.

Estes dias ouvi uma garota recitando uma poesia de João Cabral de Melo Neto – “Os Três Mal-Amados”. Eu já tinha ouvido esta poesia algumas vezes, mas foi diferente desta última. Lembrei-me de uma entrevista de João Cabral ao jornal “Folha de S. Paulo”, em que ele dizia que a arte de Manolete lhe ensinara a eliminar da poesia todos os seus excessos. Ele disse que aprendeu com Manolete a não poetizar o poema (quer dizer, fazer um poema a partir de elementos já convencionalmente poéticos), e se colocou contundente contra qualquer derramamento emotivo. Cabral disse que o problema de muitos poetas é fazer um poema poético, ou seja, perfumar a flor - é como você plantar uma rosa e depois achar que a rosa não está cheirando o suficiente e aí pôr, em cima da rosa, perfume de rosas para ela cheirar mais — ou seja, perfuma o poema. Na época em que eu li isto achei no mínimo curioso, refleti um pouco, mas só agora isto veio a ter sentido, de fato, pra mim. É interessante como relações se fazem na mente, espontaneamente, independente de qualquer reflexão e disto emergem fechamentos ou espantosas ampliações a questões antigas.

A questão é que eu faço isto sempre: isto de colocar perfume na Flor. Coloquei em maiúsculo porque a Flor sou eu. Coloco perfume na Flor (que sou eu) supervalorizando minhas qualidades, como se em mim elas fossem mais atrativas do que nas outras pessoas. Coloco perfume na Flor toda vez que tenho atitudes arrogantes e soberbas, como quem faz questão de evidenciar o quanto é importante, o quanto se destaca, o quanto se considera merecedora por ser ética, o quanto é digna de reconhecimento, etc e tal. Isto tudo como forma de cultuar a eterna performance de si mesmo, ou seja: eu sou isto e eu sou maravilhosa.

É certo que viver de modo a qualificar eticamente as vontades não é pra qualquer um. Mas eu faço isto porque acredito que vale muito a pena uma vida virtuosa, e não porque sou uma heroína livre de desejos egoístas. E outra: este modo de viver é só um ideal de vida, e nem sempre (ou quase nunca) se efetiva. E eu acredito que o problema está justamente neste ponto: por eu não conseguir efetivar o meu ideal de vida da maneira como gostaria, acabo (por necessidade egóica, talvez) evidenciando os aspectos que já consegui desenvolver. Talvez por medo de não conseguir “chegar lá”, eu faça isto de destacar “o tanto” que já consegui, dando uns retoques de modo a abrilhantar este “tanto”, ou seja, coloco perfume nas minhas vitórias e as destaco na melhor prateleira, como se elas não fossem válidas em si.

Isto só vai mudar no momento em que eu identificar meu real valor, em que eu me dar conta das minhas “potências” (no sentido aristotélico do termo), não mais para evidenciá-las, mas para desenvolvê-las. Não com o propósito de chegar lá, mas sim de me sentir aqui, inteira, certa do que sou, confiante, segura para o próximo passo.

E como é do meu feitio, encerro por dizer quem é o tal Manolete, inspirador de João Cabral. Pois bem, ele foi um toureiro. Foi também um ser humano muito retraído, calado e de uma curiosidade intelectual enorme. Dizem que quando ele se encontrava com qualquer sujeito que estava falando de um assunto que ele não entendia, ele não pronunciava uma palavra, como modo de suprir aquela falha de cultura – que ele não teve porque foi obrigado a trabalhar. Em um de seus livros, Cabral analisou as diferentes formas de tourear dos mais renomados toureiros, e concluiu que o melhor deles era Manolete, apelidado de “El Monstruo” pela maneira seca, sem firulas, com que enfrentava o touro. Deste modo, agradecida pela inspiração, remato com um trecho da poesia de João Cabral em referência a Manolete:

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra,
o de figura de lenha,
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria,
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.