quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Sem perfumar a Flor.

Estes dias ouvi uma garota recitando uma poesia de João Cabral de Melo Neto – “Os Três Mal-Amados”. Eu já tinha ouvido esta poesia algumas vezes, mas foi diferente desta última. Lembrei-me de uma entrevista de João Cabral ao jornal “Folha de S. Paulo”, em que ele dizia que a arte de Manolete lhe ensinara a eliminar da poesia todos os seus excessos. Ele disse que aprendeu com Manolete a não poetizar o poema (quer dizer, fazer um poema a partir de elementos já convencionalmente poéticos), e se colocou contundente contra qualquer derramamento emotivo. Cabral disse que o problema de muitos poetas é fazer um poema poético, ou seja, perfumar a flor - é como você plantar uma rosa e depois achar que a rosa não está cheirando o suficiente e aí pôr, em cima da rosa, perfume de rosas para ela cheirar mais — ou seja, perfuma o poema. Na época em que eu li isto achei no mínimo curioso, refleti um pouco, mas só agora isto veio a ter sentido, de fato, pra mim. É interessante como relações se fazem na mente, espontaneamente, independente de qualquer reflexão e disto emergem fechamentos ou espantosas ampliações a questões antigas.

A questão é que eu faço isto sempre: isto de colocar perfume na Flor. Coloquei em maiúsculo porque a Flor sou eu. Coloco perfume na Flor (que sou eu) supervalorizando minhas qualidades, como se em mim elas fossem mais atrativas do que nas outras pessoas. Coloco perfume na Flor toda vez que tenho atitudes arrogantes e soberbas, como quem faz questão de evidenciar o quanto é importante, o quanto se destaca, o quanto se considera merecedora por ser ética, o quanto é digna de reconhecimento, etc e tal. Isto tudo como forma de cultuar a eterna performance de si mesmo, ou seja: eu sou isto e eu sou maravilhosa.

É certo que viver de modo a qualificar eticamente as vontades não é pra qualquer um. Mas eu faço isto porque acredito que vale muito a pena uma vida virtuosa, e não porque sou uma heroína livre de desejos egoístas. E outra: este modo de viver é só um ideal de vida, e nem sempre (ou quase nunca) se efetiva. E eu acredito que o problema está justamente neste ponto: por eu não conseguir efetivar o meu ideal de vida da maneira como gostaria, acabo (por necessidade egóica, talvez) evidenciando os aspectos que já consegui desenvolver. Talvez por medo de não conseguir “chegar lá”, eu faça isto de destacar “o tanto” que já consegui, dando uns retoques de modo a abrilhantar este “tanto”, ou seja, coloco perfume nas minhas vitórias e as destaco na melhor prateleira, como se elas não fossem válidas em si.

Isto só vai mudar no momento em que eu identificar meu real valor, em que eu me dar conta das minhas “potências” (no sentido aristotélico do termo), não mais para evidenciá-las, mas para desenvolvê-las. Não com o propósito de chegar lá, mas sim de me sentir aqui, inteira, certa do que sou, confiante, segura para o próximo passo.

E como é do meu feitio, encerro por dizer quem é o tal Manolete, inspirador de João Cabral. Pois bem, ele foi um toureiro. Foi também um ser humano muito retraído, calado e de uma curiosidade intelectual enorme. Dizem que quando ele se encontrava com qualquer sujeito que estava falando de um assunto que ele não entendia, ele não pronunciava uma palavra, como modo de suprir aquela falha de cultura – que ele não teve porque foi obrigado a trabalhar. Em um de seus livros, Cabral analisou as diferentes formas de tourear dos mais renomados toureiros, e concluiu que o melhor deles era Manolete, apelidado de “El Monstruo” pela maneira seca, sem firulas, com que enfrentava o touro. Deste modo, agradecida pela inspiração, remato com um trecho da poesia de João Cabral em referência a Manolete:

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra,
o de figura de lenha,
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria,
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.