segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Mudei de assunto na vida, todos sabem. Infeliz ironia: terei que mudar de assunto na minha pesquisa de mestrado também...
Me preparo há uns quatro anos para entrar no mestrado, é um preparo que envolve mais meu amadurecimento pessoal do que técnico. A dificuldade técnica, em si, já não é problema, passei até na prova de inglês, que eu achava o mais difícil. A entrada na USP também já não é problema, tenho uma orientadora que foi com a minha cara, enfim, tudo parecia perfeito... Mas, como nada foi fácil pra mim, não seria diferente agora. Aconteceu que a abençoada orientadora que me acolheu (com carinho, inclusive), disse sem o menor senso de compaixão: “olha, entendo sua posição teórica, mas eu não conheço Carl Rogers, preciso que você se fundamente em Winnicott. Você precisa entender que não é você quem escolhe a pesquisa, ela é quem te escolhe!!!!!!!!!!!”.
O número de exclamações não traduz minha indignação. Pra quem lê isto pode parecer problema pequeno, mas não é. E isto tem a ver com o tal amadurecimento que eu busco alcançar para entrar no mestrado. Por algum momento eu pensei que eu poderia falar sobre a educação, sobre minha paixão por Carl Rogers, sobre a temática da autonomia e da autogestão que tanto me excita e estimula. Mas eu terei que abrir mão... e isto não é tarefa fácil, principalmente porque terei que me fundamentar em Winnicott. Sabe o que isto significa? P-S-I-C-A-N-Á-L-I-S-E.
E eu me desagrado inteiramente da psicanálise: meu santo não bate, não encaixa no meu corpo, não consigo nem abstrair. Eu poderia me fundamentar em qualquer outro teórico: Jung, Perls (Gestalt), Merleau-Ponty (Existencialismo), enfim, mas psicanálise é de matar.
Este episódio me fez inclusive lembrar que Freud não gostava de música. Pense: uma Arteterapeuta (que anseia pela educação democrática, de perspectiva humanista) defendendo as idéias de Freud, e ele nem de música gostava! Acho que se ele gostasse, iria preferir o caminho da música clássica, onde há pautas e regras escritas, e onde aquele que ‘desafina’ deve aprender a ‘tocar direito’, ele jamais iria se render aos encantos do Jazz, que como eu, prefere criar sempre um acompanhamento apropriado para a melodia tocada - pelo paciente ou pelo aluno, em vez de seguir o racionalismo cheio de formulações que Freud impõe com seu discurso.
Quem lê este desabafo dramático pode até pensar que o absurdo está mais em mim, do que na psicanálise. Eu até concordo, estou percebendo que em meio ao meu romantismo humanista, estou “hipostatizando” a psicanálise. Só pra constar, hipóstase é uma noção filosófica que significa originariamente “substância”, mas que com a evolução do pensamento humano ganhou a conotação de uma abstração considerada como real, uma ficção. Minha idéia da psicanálise é muito difusa, é uma hipóstase. Um conceito em torno do qual se tem respeito, mas que é e que permanece como uma relíquia incapaz de ser aplicado ou de adaptar-se à realidade.
Pois bem, em meio a esta turbulência toda, lembrei-me das palavras de um ser iluminado que conheci. Neste domingo ele me colocou deitada em seu abraço e disse: “FOCO NO RESULTADO E NÃO NO PROBLEMA”.
Aí peguei três horas da noite de ontem, coloquei debaixo do braço e fui ao encontro de Winnicott.
O primeiro ponto que gostaria de mencionar é que Winnicott coloca como central a noção do falso self. Antes de entender, meus questionamentos foram todos de extrema crítica: “se um indivíduo não é ele mesmo, quem será ele? Ele não sabe que ele não é ele mesmo, de que modo devemos tratá-lo, estudá-lo, entendê-lo? De que vale, afinal, uma filosofia, uma sociologia, e mesmo uma psicologia que estudam falsos seres humanos?”. Depois de me indignar, contar até cinqüenta, pedir a ajuda de Deus, eu parti para a compreensão: a maneira como ele expõe o tema dá a entender (o que eu concordo) que a maioria esmagadora das pessoas é capaz de uma crueldade insana sempre que se encontra em situações onde alguém mais ‘assume’ a responsabilidade pelas consequências. Winnicott vai contra a idéia de que a natureza humana é ruim, mas diz que o Ser Humano, em sua maioria, NÃO é um ser moralmente responsável (pensei nos nazistas feitos prisioneiros após o fim da guerra, que justificavam seu comportamento monstruoso alegando que estavam ‘apenas obedecendo ordens’), mas desenvolve um falso self quando se deixam levar por outras pessoas. Winnicott diz que o self é saudável e tende a evolução, se for desenvolvido em situações adequadas, e o papel do educador e do psicólogo é justamente facilitar esta condição.
Nisto achei um ponto de convergência entre Winnicott e Rogers. O primeiro, brigou ao longo da vida contra a submissão e Rogers a favor da autonomia. Dá na mesma? Talvez sim, mas ainda tenho uma cisma contra a psicanálise (talvez seja preconceito), preferia então Machado de Assis que escreveu vastamente sobre esse mesmo fenômeno (talvez eu o inclua nos meus próximos projetos rs).
Outro ponto de convergência entre Winnicott, Rogers e eu (santa pretensão) é a crença de que o ser humano vem ao mundo e começa a inventar. Ele nasce assim: recria esse mundo que nós todos conhecemos. Só muito tempo depois (‘muito’ na perspectiva do bebê, claro) ele começa a aprender. Quando isso acontece desse modo, teremos um adulto saudável, generoso, forte, capaz de compaixão e respeito pelo outro. Quando os que cuidam dele acham que deveria ser ao contrário, primeiro ele tem que aprender, e depois poderá inventar o quiser, ele perde a capacidade de inventar, porque se torna um escravo. Sei que é utopia, mas eu queria enquanto educadora libertar escravos. Transformar escravos em seres humanos livres – autônomos, como dizem os educadores mais esclarecidos. E como é difícil: os nossos escravos dão a impressão de que não gostam de ser libertados. Mas não é verdade: eles têm é medo, medo de tentar e não dar certo, medo de serem castigados por seus ‘amos’ (que não precisam mais ‘mandar’ – eles, os escravos, já sabem muito bem obedecer sozinhos).
Aproveitando a oportunidade, vale incluir neste desabafo, minhas idéias contrárias aos modos de criar filhos (pelos pais) e educá-los (pelas escolas) que temos hoje. O fato é que o sujeito da aprendizagem não pode ser criado, porque se for criado não é mais sujeito. O sujeito da aprendizagem só pode nascer sozinho. É possível atrapalhá-lo. É possível reprimi-lo. É possível impedir que ele se desenvolva. É possível obrigá-lo a ser outra pessoa que não aquela que seria naturalmente. Mas não é possível criá-lo. Só é possível permitir que ele cresça, partindo da premissa de que esse ‘crescer’ é um dom natural, mais ou menos como as plantas: uma semente cresce e vira árvore, e a árvore cria galhos e folhas e dá flores e frutos. Nós podemos regar a terra e adubar de vez em quando. Mas não podemos fazer a planta crescer. Não podemos fazer esse processo acontecer. Nem precisamos – ele acontece sozinho. Claro, podemos descobrir as melhores condições externas para que um dado tipo de árvore dê o máximo de frutos possível. Mas não podemos forçar a árvore a produzir mais. Felizmente para as árvores, elas são imunes ao desejo humano. Se lhes damos as melhores condições, saem os melhores frutos e na quantidade máxima. Mas quem faz isso acontecer é a árvore, não nós. O mesmo se dá com a educação, eu acredito, e é isto que quero com a minha pesquisa.
É isso que quero e é tão difícil porque confiança e auto-estima não se pode dar a ninguém: é preciso criar as condições para que elas surjam. E aqueles encarregados de educar outros seres humanos não podem mais permanecer sentados sobre o saber que acumularam, não podem trabalhar em cima da idéia de que a educação escolar deve transmitir conhecimento, aconselhar, atarefar. Acho um absurdo (cruel muitas vezes) isto de a escola, a família, os amigos, enfim, as pessoas insistirem em querer mudar o outro, controlar, transformar o outro em algo conveniente a si. Seria um sonho se as pessoas pudessem admirar o outro como se admira um pôr-do-sol, simplesmente deixar o outro “ser”. Talvez possamos apreciar um pôr-do-sol justamente pelo fato de não o podermos controlar. Quando olho para um pôr-do-sol, não me ponho a dizer: “Diminua um pouco o tom do laranja no canto direito, ponha um pouco mais de vermelho púrpura na base e use um pouco mais de rosa naquela nuvem”. Não faço isso. Não tento controlar um pôr-do-sol. Olho com admiração a sua evolução. Gosto mais de mim quando consigo contemplar assim qualquer pessoa...
E nesta minha viagem, Winnicott ficou para trás. Tudo bem, depois retomo, este texto já se estendeu demais, há tempos não escrevia um desabafo tão grande!

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